Transformação urbana rumo ao desenvolvimento sustentável
Teresina é uma das cidades que conta com o apoio técnico do WRI Brasil para integrar o DOTS (Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável) na revisão de seu Plano Diretor (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
“Bem-vindos à revisão do Plano Diretor da Antares!”
Antares vive uma realidade semelhante à de muitas cidades brasileiras: uma cidade dispersa, espraiada, com um corredor BRT percorrendo regiões pouco densas, vazios urbanos e infraestruturas subutilizadas. Com 1,2 milhão de habitantes, Antares passou por um processo de desenvolvimento que a levou a se tornar uma cidade 3D: distante, dispersa e desconectada. Antares, agora, busca reverter esse modelo – e tem na revisão de seu Plano Diretor a oportunidade para fazer isso.
O que diferencia Antares das cidades brasileiras? Antares é um local imaginário, e a revisão de seu Plano Diretor foi o exercício da primeira capacitação regional para integrar o DOTS – Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável nos Planos Diretores dos municípios brasileiros. O evento organizado pelo WRI Brasil com apoio da Frente Nacional de Prefeitos contou com mais de 30 participantes representando sete cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo.
Participantes debatem soluções para a cidade imaginária de Antares na primeira capacitação regional para integrar DOTS em Planos Diretores (Foto: Fernando Corrêa/WRI Brasil)
A realidade das cidades mudou ao longo das últimas décadas. O modelo que vigorou ao longo do último século – com o espaço urbano planejado para a circulação dos carros, antes de pedestres, ciclistas ou do transporte coletivo – tornou-se ineficiente e não atende mais às necessidades das pessoas que hoje vivem nas áreas urbanas. Para prosperar no futuro, os grandes centros urbanos precisam de um novo modelo de desenvolvimento: mais inclusivo, sustentável e eficiente, que promova um ambiente urbano compacto, conectado e coordenado – as chamadas cidades 3C. E, para isso, precisam mudar as diretrizes de seu principal instrumento de planejamento, responsável por nortear o crescimento e o desenvolvimento: o Plano Diretor (PD).
O DOTS é uma estratégia de planejamento que articula o uso do solo ao transporte coletivo e sua integração aos Planos Diretores parte de três princípios:
- Crescimento urbano compacto: controlar a dispersão urbana por meio de medidas que promovam o adensamento populacional e construtivo em áreas providas de infraestrutura, como é o caso dos corredores de transporte coletivo
- Infraestrutura conectada: diretrizes e medidas para aumentar a eficiência no uso das infraestruturas e reduzir a necessidade de deslocamentos - como promover a conexão entre diferentes centralidades, usos mistos e adensamentos adequados, incentivando o transporte ativo e coletivo.
- Gestão coordenada: trata-se da gestão social da valorização da terra, com o objetivo de fazer com que parte da valorização imobiliária gerada pela implantação de infraestruturas e pelo aumento da densidade, do potencial construtivo e das atividades da área seja revertido em melhorias à coletividade.
Ao incorporar essas premissas, o PD torna-se uma ferramenta capaz de mudar o modelo de desenvolvimento das cidades, de 3D para 3C. “O DOTS é uma maneira de tentar solucionar o problema da forma urbana, transformar o modelo de desenvolvimento urbano das cidades. Com policentralidades, eixos de transportes, liberando aumento de produtividade dessa cidade e da sua eficiência”, explicou Henrique Evers, coordenador de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil, que coordenou a capacitação realizada em Porto Alegre na última quarta-feira (22).
Henrique Evers: DOTS é uma estratégia para transformar o modelo de desenvolvimento das cidades (Foto: Fernando Corrêa/WRI Brasil)
Transporte coletivo de qualidade: a chave para a mudança
Oito elementos compõem e ajudam a explicar o DOTS: transporte coletivo de qualidade, densidades adequadas, uso misto do solo, transporte ativo priorizado, centralidades e fachadas ativas, espaços públicos e infraestrutura verde, gestão do uso do automóvel e diversidade de renda. Articulados entre si e, principalmente, associados a um sistema de transporte coletivo de qualidade – requisito básico para implementar o DOTS – esses elementos promovem um melhor aproveitamento da infraestrutura urbana. Para fazer isso, as cidades podem seguir oito ações:
- Intensificar adensamento e uso do solo ao longo dos eixos de transporte coletivo.
- Combater subutilização de áreas onde há transporte
- Integrar espaço privado ao público em favor do pedestre
- Promover espaços públicos de permanência e áreas verdes estratégicas
- Desestimular utilização do automóvel junto aos eixos de transporte coletivo
- Articular e conectar equipamentos sociais à rede de transporte coletivo
- Diversificar padrão social de moradia
- Fomentar espaços de suporte ao transporte cicloviário
Diante dos mapas da cidade imaginária de Antares, os participantes da capacitação analisaram os desafios locais de planejamento e como o Plano Diretor poderia incorporar as premissas do DOTS para endereçá-los. Tendo o corredor BRT como eixo estruturante para o desenvolvimento da cidade, os grupos buscaram soluções para áreas e imóveis ociosos, com pouca diversidade de usos e densidades inadequadas em relação à oferta de infraestrutura.
Com o apoio de Gustavo Partezani, urbanista que integrou a equipe responsável pela elaboração do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, foram debatidos também os instrumentos urbanísticos que podem ser utilizados para viabilizar as ações – como o Coeficiente de Aproveitamento único para toda a cidade, o IPTU progressivo (útil para combater a subutilização, já que a manutenção de imóveis ociosos se torna cada vez mais onerosa para os proprietários), a desapropriação com pagamento de títulos, o usucapião especial, a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) e o Estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).
Gustavo Partezani orientou a reflexão sobre instrumentos urbanísticos que podem viabilizar o DOTS (Foto: Fernando Corrêa/WRI Brasil)
Uma cidade fictícia levou à compreensão de desafios reais, enfrentados hoje por tantas localidades brasileiras. Nem todos os pontos geraram consenso em relação a quais seriam as ações mais adequadas a cada situação – diferentes visões foram combinadas em prol de um objetivo comum: traçar um novo rumo de desenvolvimento para Antares. Válido tanto para a cidade imaginária da capacitação quanto para as cidades reais, que neste momento pensam em como atingir o desenvolvimento urbano sustentável, é o último conselho de Partezani: “Deve-se contar com o tempo. O planejamento foi feito para ser replanejado ao longo do tempo e da demanda", ponderou Partezani. “Ao tempo, eu acrescento escala", acrescentou Henrique, “Não se pode ter medo. O medo leva aos planos vistos hoje em muitas cidades, que nada mais são do que um mapeamento do que já está feito e não um planejamento, propriamente”.
No caminho certo
Como Antares, na vida real, duas cidades buscam esse novo modelo de desenvolvimento, orientado ao transporte sustentável, com a revisão de seus Planos Diretores: Teresina e Recife. As duas capitais apresentam diferentes contextos e necessidades, mas perseguem o mesmo objetivo: a mudança em direção ao futuro – adotar um modelo de planejamento que comece a traçar hoje um futuro mais sustentável.
Teresina (foto à direita) recebeu em julho deste ano a primeira oficina para integrar o DOTS no planejamento urbano a partir da revisão de seu PD. A cidade vive as consequências de uma onda de especulação imobiliária, que ao longo das últimas décadas tem gerado significativos vazios na área urbana, e do espraiamento, que divide o município e desloca as pessoas para regiões cada vez mais distantes. Com o apoio técnico do WRI Brasil, a capital do Piauí quer colocar em prática as diretrizes necessárias para garantir o desenvolvimento sustentável, articulando o planejamento do uso do solo, a distribuição populacional e os eixos de transporte a fim de conter o espraiamento que hoje impacta a cidade.
No Recife (à esquerda, abaixo), a situação é outra: diferente da capital piauiense, a cidade pernambucana não sofre com o problema do espraiamento. O perímetro urbano do Recife é compacto e mescla-se ao de suas vizinhas (como é o caso de Olinda). Por lá, os grandes desafios são a conexão entre as diferentes centralidades da cidade, o adensamento ao longo do eixo do BRT e uma melhor gestão imobiliária do território urbano.
O WRI Brasil está apoiando a cidade no processo de revisão de seu Plano Diretor. No final de outubro, com o objetivo de entender as necessidades e lacunas da capital pernambucana, a equipe de Desenvolvimento Urbano organizou na cidade uma oficina de capacitação para os técnicos da Prefeitura do Recife. As análises e discussões do encontro mostram que as principais lacunas do PD são a dificuldade de superar as discrepâncias entre normas e estratégia e implementar instrumentos inovadores, capazes de mudar a configuração atual do sistema de planejamento urbano do Recife.
Os cerca de 30 participantes que acompanharam a capacitação trabalharam para articular estratégias, parâmetros e instrumentos que ajudem a incorporar o DOTS no Plano Diretor e chegaram a três eixos de atuação: estratégias mais genéricas no âmbito da legislação, que abranjam toda a cidade; estratégias específicas para o eixo do BRT; e operações urbanas. Recife quer qualificar seu Plano Diretor para que seja compatível com as diretrizes do Plano de Mobilidade Urbana, atualmente em fase de finalização. A ideia é conectar infraestrutura urbana e transportes a investimentos privados de forma a gerar benefícios tanto para a cidade quanto para as pessoas que vivem nelas, que não podem ser oneradas por esse processo.
O Brasil é um país imenso – e a diversidade que é a própria essência de seus habitantes está também nas cidades: cada uma possui sua história, as particularidades de como foram construídas, como se desenvolveram e como lidam hoje com seus desafios e conquistas. O que se pode dizer sobre as cidades brasileiras é que, aos poucos, buscam acertar o passo na trajetória que deve ser comum a todas: a transformação urbana rumo ao desenvolvimento sustentável.