Ruas Completas: Recife quer dar nova cara à Rua da Hora
Quase 150 anos depois que o médico Pedro da Hora Santiago pediu para rebocar sua casa do terreno nas proximidades do Beco do Espinheiro e deixou o sobrenome de herança para atual Rua da Hora, Recife planeja uma nova transformação na via. A capital pernambucana, parte da Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono, a elegeu para um projeto piloto de rua completa. Coordenada pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS), a rede tem o objetivo de promover a redução de emissões de gases do efeito estufa nas cidades a partir de boas práticas de desenho urbano e da promoção do transporte ativo.
O projeto piloto deve transformar a Rua da Hora para favorecer modos de transporte não poluentes e garantir um ambiente seguro a todos os usuários (pedestres, ciclistas, usuários do transporte coletivo e motoristas). Do tempo em que era uma floresta urbana denominada Matinha até hoje, a área foi ocupada por comércio, bares, restaurantes e se transformou em um polo gastronômico, que convive com muitos edifícios residenciais.
Compare imagens da Rua da Hora no início do século 20, durante a instalação de linhas de bonde, e atualmente:
Com 986 metros de comprimento e parte do trajeto de 11 linhas de ônibus ao longo de três paradas, a Rua da Hora forma um binário com a Rua do Espinheiro e tem importante articulação para o trânsito da região – como os cruzamentos com a Avenida João de Barros, a Rua Amélia e a Avenida Conselheiro Rosa e Silva, por exemplo. Com três pistas de sentido único e calçadas estreitas, não é incomum presenciar pedestres atravessando a via de forma perigosa, tendo de pisar na rua para desviar de um poste ou uma árvore. Também se veem muitos ciclistas correndo risco entre os veículos e até mesmo pedalando na contramão. Ao mesmo tempo, estão lá as características ideais para torná-la mais completa e sustentável: grande movimento de pessoas, fachadas ativas e espaço físico, hoje dominado pelos veículos motorizados.
Outra característica relevante são os frondosos oitís, árvores que fornecem sombra e são tão marcantes para a paisagem que batizam um conhecido bloco carnavalesco. Resistente à poluição urbana, a espécie pode chegar a 15 metros de altura, mas seu tamanho é hoje um dos principais desafios para os projetistas da transformação da Rua da Hora. Muitas vezes, ocupam um bom espaço das calçadas e suas raízes desafiam o piso. Somado a isso, diversos muros impedem que os passeios tenham o dimensionamento adequado.
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Rua da Hora, Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Esses e outros desafios foram explorados durante um workshop realizado na última sexta-feira (9) pela equipe do WRI Brasil Cidades Sustentáveis com os técnicos do Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS), da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), da prefeitura do Recife e de diversas cidades de Pernambuco, como Gravatá, Olinda, Caruaru, Cupira, Jaboatão dos Guararapes, entre outras. Paula Santos, coordenadora de Mobilidade Ativa, Ariadne Samios, analista de Desenvolvimento Urbano, e Virginia Tavares, analista de Mobilidade Urbana, trabalharam os conceitos e as soluções de desenho urbano capazes de tornar as ruas mais completas, a partir de intervenções para garantir maior segurança e acessibilidade a todos os usuários da via.
De acordo com Sideney Schreiner, diretor executivo de Planejamento e Mobilidade do ICPS, a Rua da Hora foi escolhida por apresentar diversos desafios que podem ser resolvidos a partir desse tipo de intervenção. “Buscamos identificar a rua com maior potencial a partir de quesitos técnicos, como existência de transporte público, comércio, alta concentração de pedestres, problemas nas calçadas, digamos assim, elementos dificultadores que pudéssemos trabalhar. Outra preocupação foi alinhar isso aos diversos projetos que temos no instituto. Assim, podemos gerar uma diversidade de ações na cidade em termos geográficos e trabalharmos livres de paradigmas de outros projetos que estamos fazendo”, explica Schreiner.
Da gastronomia à convivência de bairro
Circular pela Rua da Hora, para quem não mora no Recife, é também entender um pouco da dinâmica da cidade. Com calçadas cheias de vida, é comum ver vendedores de frutas, água de coco, cocada e outros doces, além de uma circulação frequente de bicicletas de carga, usadas para diversos tipos de entrega. Alguns dos que pedalam com garrafas de 20 litros de água mineral são funcionários da Marinho Bebidas, loja quase na esquina da Barão de Itamaracá com a Rua da Hora, comandada por Marinho Rodrigues, 59 anos. Ele costuma repetir como mantra para que os rapazes tomem cuidado ao pedalar: “o lado mais fraco é sempre o que sai perdendo”. Marinho, no mesmo ponto há mais de 20 anos, brinca que “Recife é uma cidade plana, era para ser uma Holanda brasileira”. Mas volta à realidade quando pensa na convivência entre pedestres e ciclistas. “Hoje, o volume de carros é grande demais e ninguém dá prioridade aos pequenos”, diz.
Trabalhando próximo a Marinho está outro morador antigo do Espinheiro e um dos principais defensores dos pedestres do Recife. Francisco Cunha, arquiteto e diretor da TGI Consultoria e Gestão, é articulador dos movimentos Observatório do Recife e Olhe Pelo Recife – Cidadania a Pé. Autor de vários livros sobre a história da cidade, é um defensor das “calçadas como primeiro degrau da cidadania urbana”, conceito que colocou em prática também em livro.
Uma das atividades que o tornaram conhecido na cidade são as caminhadas em que atua como guia e chegam a reunir uma centena de pessoas. “Quem entra no carro está fora da cidade, no máximo vê um filme passando no para-brisa”, provoca Cunha, comparando a escala e a velocidade de pedestres e motoristas. “Estabelecer o passeio público na Rua da Hora, garantir que as calçadas tenham o mínimo dimensionamento exigido pelo Código de Trânsito e pela ABNT, que é de 1,20m (largura) por 2,10m (altura livre obstruções), já seria revolucionário! Sendo que esse 1,20m não permite nem casal, nem idoso com andador, nem duas pessoas se cruzarem, nem uma pessoa andando com cachorro. Mas tornar o espaço do pedestre inviolável já seria revolucionário”, defende.
Francisco Cunha, defensor das calçadas do Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)
Cunha é reconhecido hoje pela luta em prol da mobilidade a pé e das calçadas do Recife, mas os outros moradores do bairro também convivem com os problemas diariamente. A professora aposentada Gisele Costa, 69 anos, mora desde que nasceu no bairro do Espinheiro e, por vezes, é obrigada a aumentar o volume da televisão para cobrir as buzinas durante o horário de pico do trânsito na Rua da Hora. “Vejo diariamente os problemas enfrentados por idosos nestas calçadas irregulares. Tinha um rapaz cadeirante que passava na rua, eu achava horrível”, conta. O administrador de empresas, Marcelo Rangel, 64 anos, chama a atenção para a velocidade: “em alguns casos, principalmente com motociclistas, há abuso e se torna arriscado para os pedestres”.
Gisele Costa, 69 anos, professora aposentada, moradora da Rua da Hora (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Marcelo Rangel, 64 anos, morador da Rua da Hora, em Recife (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Primeiros passos para a transformação
Durante o workshop realizado na última sexta-feira, a equipe do WRI Brasil Cidades Sustentáveis trabalhou o conteúdo dos manuais desenvolvidos pela organização e alguns conceitos das Ruas Completas. Com base nessas inspirações, os participantes foram divididos em grupos e pensaram possíveis soluções para uma Rua da Hora mais acessível, democrática e segura. A presença dos oitís, certamente, é um dos principais desafios para os técnicos. Também há um consenso de que é necessário redistribuir o espaço viário, hoje dominado pelos veículos motorizados. “Essa rua tem um caráter muito forte de articulação daquela região. E tem um caráter social importante por ser um eixo de acesso das pessoas de baixa renda que trabalham ali, o que é uma preocupação muito grande do plano de mobilidade da cidade (deve ser entregue à Câmara de Vereadores do município em dezembro). São pessoas que andam de bicicleta, usam o transporte coletivo muito cedo pela manhã ou bem tarde durante a noite”, explica Schreiner.
O técnico participou de um dos grupos que propôs possíveis intervenções na via. Para ele, a principal dificuldade em termos de implantação física é adequar o espaço à presença das árvores, pois removê-las não está nos planos. “Gerou até a questão, mencionada por um grupo, de que a gente precisaria inverter as seções da calçada, colocar a faixa de serviço no meio e construir a faixa livre depois da calçada que existe hoje. Isso vai exigir uma estratégia de alinhamento para explorarmos daqui para frente. Podemos usar balizadores, manter ou não o desnível, e isso o detalhamento vai trabalhar”, explica Schreiner.
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Workshop de ruas completas foi realizado pelo WRI Brasil em Recife (fotos: Daniel Hunter/WRI Brasil)
A Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono, formada por Niterói, Porto Alegre, João Pessoa, Campinas, Joinville, Salvador, São Paulo, Juiz de Fora e Fortaleza, além do Distrito Federal e do Recife, irá promover a disseminação do conceito de Ruas Completas através da elaboração de projetos piloto com apoio técnico do WRI Brasil Cidades Sustentáveis. A capital pernambucana foi a primeira a receber o workshop e já definiu a Rua da Hora para o trabalho. Até o final deste ano, todas as cidades irão trabalhar em possíveis soluções para a democratização dos espaços urbanos brasileiros, com o objetivo de priorizar os deslocamentos a pé e de bicicleta, que não emitem gases de efeito estufa.
No fundo, reduzir emissões nas cidades passa por uma mudança de paradigma, pois se estabeleceu uma realidade no país de que a rua é dos carros. Reverter esse uso desproporcional do espaço é preparar as cidades para um futuro sustentável e humano. “Os padrões urbanos atuais pedem que se desenhe as ruas dando prioridade aos pedestres, aos ciclistas, ao transporte coletivo, ao sistema de logística urbana e, por último, ao carro. Não é fácil inverter o padrão usado por muitos anos. Mas é necessário para criar cidades mais ativas e seguras”, explica Paula Santos.
Para impulsionar a mobilidade ativa nas cidades brasileiras
As cidades têm o poder de desenvolver projetos que transformem as ruas e calçadas em espaços seguros e atrativos para os pedestres. Em abril deste ano, o WRI Brasil Cidades Sustentáveis lançou novas ferramentas para orientar os municípios nesse caminho. Duas novas publicações e um compilado de ações em escala municipal e federal reúnem conceitos normas técnicas, orientações e boas práticas para qualificar a mobilidade ativa no Brasil.
8 Princípios da Calçada
As calçadas são o espaço de excelência no que tange à circulação de pedestres e, portanto, uma infraestrutura fundamental para o sucesso da mobilidade ativa em uma cidade. O guia 8 Princípios da Calçada - Construindo cidades mais ativas aborda a temática de forma abrangente, elencando princípios que partem da integração entre regulamentação, planejamento e execução. O documento foi desenvolvido com o objetivo de reforçar a função das calçadas como espaço de convivência entre as pessoas e apresenta subsídios para ações capazes de transformar a realidade a partir do compartilhamento de responsabilidades.
Acessos Seguros
Se caminhar até uma estação de transporte coletivo não for seguro, sem redes de calçadas de qualidade, infraestrutura segura para pedalar, travessias de pedestres sinalizadas ou tempo suficiente nos semáforos, facilmente as pessoas acabam optando pelo transporte motorizado individual. O guia Acessos Seguros – Diretrizes para qualificação do acesso às estações de transporte coletivo apresenta cinco princípios, 16 diretrizes e 38 ações para o desenvolvimento de projetos de qualificação urbana. Intervenções nos acessos às estações impactam uma área mais ampla do que seu entorno imediato e, quando bem planejados, resultam na melhoria dos deslocamentos de toda a região.
20 ações para impulsionar o transporte ativo no Brasil
O material apresenta 20 ações – 16 em nível municipal e quatro em nível federal – para estimular a mobilidade ativa no país. São propostas direcionadas ao setor público e acompanhadas de orientações sobre instrumentos de financiamento para viabilizá-las. Cada ação foi avaliada em três categorias: abrangência, custo e tempo de execução. As diretrizes elencadas refletem a integração de tendências mundiais com o trabalho que o governo federal as administrações municipais já vêm desenvolvendo para priorizar o transporte ativo.