Respeito aos direitos humanos e participação social constroem cidades equitativas
Não é possível afirmar que a rápida urbanização vivenciada nas últimas décadas foi um processo saudável para as cidades. Em realidade, muito foi construído sem planejamento, mas com o objetivo de acomodar o número crescente de pessoas. Esse processo desordenado acabou deixando alguns direitos dos cidadãos em segundo plano. Hoje, o foco das discussões e planos globais se volta para um deles: o direito à cidade.
O conceito é cada vez mais reconhecido depois da assinatura da Nova Agenda Urbana, realizada durante a Habitat III, Conferência das Nações Unidas para a Habitação e o Desenvolvimento Urbano Sustentável, em Quito, em outubro do ano passado. O direito à cidade diz respeito à inclusão e à participação das pessoas no meio urbano, é um direito coletivo que pede por serviços e investimentos para toda população, sem deixar “ninguém para trás”. Garantir essa prerrogativa exige uma mudança nas cidades que só pode ser executada com a contribuição social.
A mesa Cidades inclusivas e igualitárias, realizada na sala temática Cidadania, participação social e o direito à cidade do IV Encontro dos Municípios com o Desenvolvimento Sustentável reuniu nomes de diversas organizações que buscam a melhorar a qualidade de vida nas cidades por meio da participação da população. A mesa, composta predominantemente por mulheres, ressaltou a importância dos direitos humanos na construção de uma sociedade mais equitativa.
“Kate Gilmore falou ‘não há cidades sem pessoas e não há pessoas sem direitos humanos’. Isso pode parecer óbvio, mas é importante lembrar que todos os cidadãos são titulares dos mesmos direitos humanos. No entanto, as implicações disso muitas vezes são ignoradas”, afirmou Ângela Pires, assessora de direitos humanos da ONU no Brasil. “Pessoas precisam de seus direitos e ainda de ter ferramentas para exercer esses direitos. Estamos falando em um conjunto de ações que vão desde planos diretores da cidade até políticas públicas.”
Normalmente quem sofre mais as consequências de uma cidade desorganizada é a população mais vulnerável. Cidadãos de baixa renda, moradores de favelas e de periferia, que vivem afastados dos sistemas de transporte coletivo; idosos, pessoas com deficiências, crianças, que não encontram espaço adequado para se deslocar; grupos étnicos e até mesmo mulheres, que convivem com a inequidade social. A participação de todos esses é de vital importância para a instituição do direito à cidade.
“A questão que nos move é focada em como as cidades podem ser mais inclusivas. Simone de Beauvoir escreveu ‘a verdade de uma cidade são seus habitantes’. Se em algum ponto da cidade a verdade é dura, cruel e muito afastada, não quer dizer que ela não exista. É onde precisamos trabalhar”, destacou Daniely Votto, gerente de Governança Urbana do WRI Brasil. “Há um afastamento entre o que pensa o executivo e os gestores e aquilo que o cidadão realmente precisa. Com alinhamento da população ajudamos as cidades a descobrir qual a visão de cidade que a população quer”, explicou Daniely.
Para Denise Morado, da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é fundamental uma mudança no processo de transformação dos municípios. “É necessária uma transformação no que estamos dizendo. Por exemplo, falamos no acesso aos direitos humanos, no direito à cidade. No entanto, antes disso precisamos trabalhar com o direito de existir na cidade. Precisamos ser mais críticos e contundentes para evoluirmos os processos”, exaltou Denise.
As recomendações contidas na Nova Agenda Urbana vão ao encontro dos esforços globais para alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas. Esses objetivos formam um plano de ação a ser executado até 2030 e buscam proteger o planeta e garantir qualidade de vida para toda a população. A implementação dessas metas ocorre no nível municipal evidenciando, mais uma vez, a importância da comunicação entre o poder público e a sociedade civil para o cumprimento de cada objetivo. "Convido a olhar a cidade sob o olhar do outro. Pensar da perspectiva da mulher, do idoso e da criança. Podemos descobrir muito mais", disse Daniely.
Segundo Vinícius Monteiro, assessor para a População e Desenvolvimento do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a rápida urbanização dificultou o desenvolvimento urbano de diversas formas, e hoje ainda temos que pensar no crescimento rápido das médias cidades. Em 1940, 30% da população brasileira vivia em áreas urbanas. Em 2010, atingimos a marca de 85% da população vivendo em cidades. Vinícius acredita que a Agenda 2030 será fundamental. “É necessário pensar os ODS de maneira transversal. Pensar as inter-relações entre os objetivos. O ODS 11 é fundamental para pensar a questão das cidades para além dele próprio.”
Todos os debatedores da mesa citaram a importância da coleta e divulgação de dados nas cidades. O Brasil, apesar das iniciativas e leis que buscam a transparência e o acesso à informação, ainda precisa evoluir nesse processo de abertura de dados. Uma população com informação ganha liberdade para participar das decisões e discussões sobre o futuro da cidade. “É uma luta cotidiana o acesso a esses dados. Quando trabalhamos com governos ou também organizações não governamentais, temos a obrigação de publicar esses dados da maneira mais acessível possível. É necessário transformar os processos de decisão em relação à produção da cidade. Eles vêm acontecendo em instâncias fechadas entre governo e mercado. Se continuarmos assim estaremos fazendo mais do mesmo, repetindo as mesmas discussões que não vêm contribuindo para cidades melhores”, destacou Denise.
“Dados e informações, quando de posse da sociedade, são instrumentos de poder. Essas informações precisam ser divulgadas da forma correta para serem apropriadas e usadas como ferramentas”, lembrou Vinícius.
Soluções inovadoras
Como parte do painel, foram apresentadas três soluções inovadoras, projetos que de alguma forma colocam em prática alternativas para solucionar questões levantadas pelos participantes da mesa de debates.
A Coalizão Internacional de Cidades Inclusivas e Sustentáveis (ICCAR, na sigla em inglês) é uma iniciativa lançada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para estabelecer uma rede de cidades interessadas em compartilhar experiências que contribuam para melhorar políticas de combate ao racismo, discriminação, xenofobia e a exclusão. “Buscamos um trabalho conjunto com as cidades. Temos muitas vezes os mesmos problemas em diferentes contextos. Em conjunto podemos encontrar soluções”, explicou Andrés Morales, especialista regional do setor de Ciências Sociais e Humanas da UNESCO.
A partir dessa rede, o projeto busca desenhar uma metodologia de indicadores de políticas públicas de cidade. Todas as cidades da América Latina e Caribe podem aderir à coalização, independente de tamanho populacional, localização geográfica ou condição social, política e econômica.
Outra solução foi trazida pela secretária de Cidadania e Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, Patrícia Bezerra. A cidade instituiu a Política Municipal para a População Imigrante em 2016 para incentivar o fortalecimento e a articulação de coletivos e associações de imigrantes e de organizações da sociedade civil que promovam ações voltadas a esta população. A Lei sancionada pela cidade é a primeira no país com esse objetivo e institucionaliza um conjunto de políticas públicas e o Conselho Municipal de Imigrantes. A missão do conselho é elaborar, definir os princípios e diretrizes, monitorar e avaliar a política municipal para imigrantes. Ele será formado 100% de imigrantes de qualquer origem, sendo metade dele composto por mulheres. “São Paulo é uma fonte clara de diversidade. Na cidade e no Brasil temos uma capacidade imensa a partir do que já foi construído e o que está em construção com base em uma multiplicidade cultural e étnica”, afirmou Patrícia.
Trazendo uma solução que pensa no meio ambiente das cidades, o Projeto Criança e Natureza tem como missão cidades mais verdes e pensadas para as crianças. A iniciativa nasceu da vontade de aproximar as crianças da natureza e de espaços públicos, onde elas podem experimentar, criar e reconhecer-se.
“As crianças urbanas, não apenas elas, mas podemos estender para toda sociedade, sofrem do chamado transtorno do déficit de natureza. O contato com a natureza não é oferecido de modo saudável nas cidades. As crianças pagam preços altos por isso, assim como toda a população”, comentou Laís Fleury, coordenadora do projeto Criança e Natureza.
Laís apresentou o conceito de “cidades biofílicas”, locais vibrantes, com mais espaços verdes e com um desenho urbano que facilita o contato com a natureza. “Precisamos de recursos para maior qualidade de vida, de conhecimento técnico, mas principalmente de uma lapidação do olhar, uma vontade de ter a natureza como eixo norteador”, completou.
As atividades do WRI Brasil no EMDS são apoiadas por: CIFF (Children's Investment Fund Foundation), Stephen M. Ross Philanthropies, ICS (Instituto Clima e Sociedade), Fedex Express, Arconic Foundation, BMZ (Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha), GIZ, Citi Foundation, Centro de Excelência ALC-BRT e UNEP.