Carlos Nobre: o desenvolvimento sustentável precisa da participação ativa da sociedade
Marraquexe (Marrocos) sediará a COP 22, de 7 a 18 de novembro. (Foto: frado76/Flickr-CC)
O Brasil assumiu um papel importante nas negociações realizadas em Paris, em dezembro do ano passado, na 21ª Conferência do Clima (COP 21), tendo entrado até mesmo no chamado High-Ambition Coalition, grupo de países com o objetivo comum de aprovar metas mais ambiciosas para o acordo. Passado um ano, a COP 22 irá discutir as ações concretas que deverão ser tomadas para o cumprimento e a entrada em vigor do tratado. Novamente será uma oportunidade de o Brasil mostrar seu posicionamento sobre os esforços para a manutenção saudável do planeta. Em visita ao WRI Brasil Cidades Sustentáveis, Carlos Nobre, um dos maiores especialistas climáticos do mundo e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC), falou sobre o panorama brasileiro no contexto das negociações internacionais e as consequências que atrasos na tomada de ação podem gerar. Confira.
O ponto de partida do Brasil contra as mudanças climáticas
No sentido da diplomacia brasileira, o Brasil tem assumido posições muito ambiciosas já há muito tempo. Houve, na verdade, uma grande inversão da posição brasileira em 2009. Antes desse ano, o Brasil se alinhava com o G77+China – grupo que reúne países em desenvolvimento e a China –, sempre em uma posição muito conservadora, "o problema não é conosco, vocês países desenvolvidos que causaram o problema", "nos deixem expandir nossas emissões o quanto precisarmos para nos desenvolvermos". Em 2009, na COP 15, em Copenhagen, o presidente Lula inverteu essa posição. O Brasil passaria a ter metas voluntárias em relação às emissões, não se eximiria mais da responsabilidade de um país com grandes emissões. O presidente fez isso muito baseado em um decréscimo dos desmatamentos da Amazônia que, em 2009, já eram muito visíveis. Essa política deu certo. O desmatamento da Amazônia continua a decrescer, foi estabilizado em 2014, e, ainda que apresente números altos, eles são muito menores que os de 2005 ou 2004 – 80% a menos – e, com isso, as emissões brasileiras decresceram.
Metas de país desenvolvido
O Brasil já chegou a um momento em que era o terceiro país que mais emitia gases poluentes, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Hoje, somos o sétimo país em emissões. Com isso, ganhou-se um crédito diplomático muito grande e, então, o Brasil assumiu esse protagonismo nas discussões climáticas como um país que fala alto. Essa política foi mantida durante todos esses anos e, novamente, em 2015, o governo inovou. As metas em 2009 eram sempre em relação ao cenário tendencial de emissão, o famoso business-as-usual. Em 2015, o Brasil elimina essa posição e faz uma meta de redução de emissões em relação ao valor observado no ano base de referência que é 2005, um ano de pico de emissões históricas. É elaborada, então, uma meta razoável de emissões para 2025-2030, sendo o Brasil o único país em desenvolvimento com padrão de emissões relativamente grande que chegou a esses números. O restante são apenas países desenvolvidos. Os em desenvolvimento ainda fazem metas de redução da velocidade de aumento das emissões. É nesse sentido que, desde 2009, o Brasil tem tido uma consistência de política climática e de mitigação, sem nunca ter acessado os fundos verdes. Foi através de políticas públicas que obteve sucesso na redução do desmatamento.
O desmatamento e a atuação do Brasil na COP 22
O Brasil chega muito bem municiado na COP 22, em Marraquexe, já tendo ratificado o Acordo de Paris, e em uma posição muito forte de negociação. Mas ainda não é possível saber qual a postura exata que o país vai assumir. Estou curioso para saber se o Brasil vai lançar o número anual de desmatamento da Amazônia antes ou depois da COP 22. É importante ser lançado antes para manter uma postura de transparência, já que, se o número for maior do que o do ano passado, é um sinal preocupante. Já seriam dois anos com desmatamento crescente. Acho que o sinal vermelho já está piscando.
A meta que o Brasil tinha em 2009 era chegar a 3.600 quilômetros quadrados de desmatamento em 2020, porém, se esse ano não voltar à tendência de queda, será muito difícil atingir o objetivo. Os fatores que levavam à diminuição rápida do desmatamento, que é comando e controle e implementação de medidas legais para evitar o desmatamento ilegal, já não estarão mais funcionando com a eficácia que antes tinham.
Se o número voltou a aumentar, a pressão sobre o Brasil na COP 22 será muito grande. Espero que o governo federal já esteja pronto para responder a essa pressão. Na proposta do Brasil para 2030, controlar o desmatamento é nossa principal bandeira. Além disso, a manutenção das emissões da agricultura no nível de hoje, aliado à projeção do crescimento da agricultura, de 4 a 5% do produto agrícola bruto por ano - sem aumento de emissão -, significa, em 15 anos, uma redução de quase 50% da emissão da agricultura por produto final.
Energia e emissões fósseis
A parte mais preocupante em relação ao que se pode traduzir ou interpretar das metas brasileiras é que a leitura do documento leva à conclusão de que o Brasil irá aumentar as emissões de energia. No mundo desenvolvido a descarbonização exige diminuição das emissões do setor de energia. Hoje, 80% das emissões do mundo vêm da queima de combustíveis fósseis. No Brasil, nós estaríamos aumentando essas emissões. Essa é a desconexão das INDCs (Contribuições Intencionais Nacionalmente Determinadas) brasileiras com o resto do mundo. Se quisermos realmente atingir as metas do Acordo de Paris, mesmo em 2°C, precisa haver uma descarbonização da economia.
Precisamos praticamente zerar as emissões fósseis até a metade do século. O Brasil estaria indo contra a tendência mundial e perderia oportunidades de implementar em grande escala as formas renováveis de energia, principalmente a solar e a eólica. As metas brasileiras são muito boas e desafiadoras olhando no agregado, mas no setor energético é como se o país ainda fosse um país fóssil no sentido que grande parte da eletricidade vem da água.
A velocidade que as energias renováveis entram nos outros países é muito rápida. Com isso surgem tecnologias disruptivas, como, por exemplo, o anúncio da Alemanha que não mais permitirá a produção de veículos movidos a motores à combustão a partir de 2030, um país que tem a maior indústria automobilística do mundo. Em 14 anos eles irão reformar o sistema produtivo para tornar os carros elétricos, enquanto o Brasil ainda fala em expandir e subsidiar a política de preços de combustíveis fósseis no Brasil.
Por fim, uma nota muito preocupante é a Medida Provisória (n° 735/2016) que sinaliza que o Brasil vai inaugurar termoelétricas a carvão mineral no Sul do Brasil entre 2023 e 2027. Isso é um sinônimo de atraso institucional inaceitável. Essa é uma sinalização péssima que eu espero que seja vetada pelo presidente. Não é admissível que o Brasil por um lado sinalize grande protagonismo e adesão ao Acordo de Paris e por outro lado vai estar em 2023 inaugurando termelétricas movidas a carvão.
O planejamento das cidades e a pressão da sociedade
Em países altamente urbanizados como o Brasil, as decisões e desejos da sociedade urbana são o que impacta tudo. O caminhar das cidades é o que determina todo o resto. A sociedade urbana brasileira não é ainda totalmente conectada com a importância de como uma cidade responde a esses desafios climáticos. Por exemplo, somos um país de baixíssima eficiência energética, um dos países com o maior desperdício na cadeia de produção de alimentos, desde o trabalho na fazenda até a distribuição e a atitude das pessoas com o que sobra de comida. São inúmeras esferas que dependem fortemente de uma mudança de comportamento individual e coletivo na escala da comunidade.
Essas transformações sociais precisam acontecer no âmbito das cidades e ser cobradas pela sociedade. No Brasil, as transformações têm tido um percurso muito difícil por política pública, que são influenciadas excessivamente por interesses econômicos de lobby e, as vezes, interesses escusos. Portanto, se a pressão não vier da sociedade, as mudanças serão muito lentas. A pressão social o brasileiro precisa aprender a pegar em suas mãos. Ele não deve esperar que a classe política sempre tome as decisões em benefício do melhor da sociedade. Sociedades urbanas brasileiras precisam tomar o destino nas suas próprias mãos. O papel da educação é muito importante. Mostrar o que a ciência comprova. Os riscos que, por exemplo, esses gases poluentes dos combustíveis fósseis nas cidades significam para a saúde.
Urbanização insustentável
As pessoas precisam se voltar contra o que foi o modelo caótico de urbanização do Brasil dos últimos 50 anos, talvez um dos mais caóticos do mundo, e que criou cidades insustentáveis. Não existe hoje cidade grande no Brasil minimamente sustentável. A população dessas cidades tem que se organizar e ter um diagnóstico claro dessa congestão que impacta demais a qualidade de vida, ter conhecimento de como poderia uma cidade ser organizada, o que seriam cidades sustentáveis do futuro, como seria o deslocamento, como seria e qual o futuro do mercado de trabalho em cidades com milhões de habitantes, qual é a vocação de cada cidade brasileira em função de suas particularidades dentro do espaço sub-regional que ocupa etc. Essa discussão precisa envolver mais a sociedade, hoje ela é feita ainda muito pela academia, que tenta influenciar as políticas públicas com sucesso muito relativo. A ocupação do espaço urbano ainda hoje é muito determinada por interesses mobiliários. Não necessariamente isso é o melhor para se desenhar as cidades sustentáveis do futuro.
Consequências das mudanças climáticas
Até recentemente, as pessoas imaginavam mudanças climáticas e pensavam que podia afetar no nível do mar, na produção agrícola, nas chuvas ou nos extremos climáticos, mas a ideia é que éramos praticamente imunes pela grande capacidade adaptativa do homem. Julgávamos que estávamos fora da área de risco. Porém, estudos mais recentes, a partir de 2010, começaram a mostrar que não estamos tão longe assim do chamado “limite fisiológico de resistência ao calor humano”. Esse limite é atingido quando a temperatura do ar chega a 35°C, um número muito fácil de ser alcançado, e a umidade relativa do ar chega a 100%. Nessa situação, o corpo não perde mais calor. Um bebê ou um idoso nessas condições aguentam 30 minutos, uma pessoa muito saudável resiste duas horas. Esse é o chamado choque térmico.
Se continuarmos a aquecer o planeta, muitas regiões quentes, inclusive Porto Alegre no pico do verão, podem passar desse limite. Isso ocorrendo não é mais saudável viver fora do ar-condicionado. E se passar muito desse limite, não serão algumas horas por dia, serão meses por ano. Muitos estudos têm sido feitos para algumas regiões mais quentes e úmidas do planeta mostrando que se a temperatura subir, por exemplo, 7°C, nós teremos centenas de milhões de pessoas que estariam vivendo meses por ano nessas condições.
Ninguém imaginava que as mudanças climáticas pudessem criar um mundo dessa natureza, é um limite fisiológico, e o risco para a saúde é imenso, as pessoas não vão poder ficar expostas. Pessoas com doenças coronárias, por exemplo, terão de ficar permanentemente em um ambiente refrigerado. É outro mundo. Esse limite fisiológico não está tão longe. No Brasil, muitas cidades já atingiram isso que chamamos de “temperatura de bulbo úmido”, que seria equivalente a 31°C - pode ser atingido com a temperatura máxima de 38°C e umidade relativa de 66%.
Se o Acordo de Paris fracassar, se as emissões continuarem a aumentar ou ainda se tivermos algum acidente, como algum grande reservatório de gases de efeito estufa no fundo do oceano se desestabilizar e vier para a atmosfera, o estrago não tem mais como consertar. Para as gerações futuras, adiante em alguns séculos, com 3°C ou 4°C a mais, o nível do mar subirá de 5 a 10 metros, toda a linha costeira será redesenhada, a maioria das cidades costeiras terão de ser abandonadas, será outro planeta. Nós criamos cidades que terão de ser abandonadas.
Fotos: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis
